A NOITE É TAMBÉM UM SOL

Toda luminosidade revelará a própria impossibilidade de tudo mostrar.
— Priscilla Menezes



Nossos próprios olhos como alhures - Priscilla Menezes

Em A noite é também um sol vemos pequenos trechos fílmicos e imagens fotográficas projetadas individualmente ou em conjuntos, como trípticos. Por vezes, filme e foto se justapõem ou se confundem – o que parece ser uma fotografia pode revelar algum detalhe movente. É feito de operações que conectam: fotografia e filme, imagem e rasura, obscuridade e revelação, força noturna e potência solar. As imagens aqui engendradas não acentuam distinções entre formas ou entre figura e fundo, apresentam antes a potência da indiscernibilidade, dos intricamentos, das hibridizações. Ainda que não haja prevalência das formas figurativas, não se trata de um trabalho abstrato, mas de uma outra política de representação.  

A proa de um barco rasga a escuridão para ser, na sequência, engolida pela noite. Uma silhueta segura uma pequena lanterna e apresenta a operação que recorrerá: toda luminosidade revelará a própria impossibilidade de tudo mostrar. Há também a recorrência de uma tela em preto que pontua e dá ritmo ao filme, como um olho que pisca para continuar a olhar. Há, portanto, um jogo entre evidenciar e velar  que acontece nos territórios limítrofes entre luz e sombra, mas também nas imagens aquosas em fluxo, nas formas tempestuosas e nas cenas enevoadas. Assim como em imagens de proporção indistinta que tanto poderiam ser minúsculas, celulares, como imensuráveis, cósmicas, invisíveis a olho nu.

 

Foi no mundo Renascentista que a perspectiva linear se sedimentou como o modo representativo que expõe a verdade imagética. Tal estratégia instaura o ponto de vista monocêntrico como local privilegiado de afirmação da realidade, a partir do qual ver com verdade se torna sinônimo de ver com distanciamento, imobilidade e discernibilidade. Mas há dimensões do real que só são acessíveis a outros modos de expressar, como os produzidos por Daniela Paoliello. O historiador da arte Georges Didi-Huberman, em Diante da Imagem (2013), descreve um afresco de Fra Angelico feito na parede de uma pequena cela do convento de San Marco, em Florença. Trata-se de uma representação de um tema famoso: a anunciação. Mas ao historiador não interessam as figuras discerníveis do tema, e sim uma espécie de mancha branca que faz refletir uma estranha luminosidade. Sobre essa luz que nada representa, nada desvela e nada esclarece Didi-Huberman se debruça, entendendo-a como um rastro do mistério.

Para o autor, esse ponto enigmático, sintomático, é o que abre a representação: faz a imagem escapar da circunscrição do legível, tornando-se algo mais próximo de um acontecimento. Já que isso (...)  nos atinge sem que possamos apreendê-lo e nos envolve sem que possamos prendê-lo nas malhas de uma definição. Ele não é visível no sentido de um objeto exibido ou delimitado; mas tampouco é invisível, já que impressiona nosso olho e faz inclusive faz bem mais que isso. Ele é matéria. (...) Dizemos que ele é visual (Didi-Huberman, 2013, p. 25).  Há algo em certas imagens que ultrapassa o regime das visibilidades e se alastra por sua visualidade: uma eficácia que atua nos enlaces entre saber e não-saber. Uma força indócil às sistematizações  simbólicas, uma potência coercitiva que escapa aos sentidos, incide sobre o olhar como pura aparição sensível. Uma força que afronta a posição central e vantajosa do sujeito do saber e convida a uma perspectiva da relação: a visão como um encontro de olhares. Como em um dos trípticos de A noite também é um sol que evidencia um foco de luz incidindo sobre a paisagem de modo a sugerir, por analogia, a forma de olhos que nos encaram: olhos-floresta, olhos-noite, olhos-terra. Se a paisagem também nos olha é porque está viva e, se vive, se move e pode escapar.

As imagens criadas por Daniela são permeadas de eficácia sombria, essa que, segundo Didi-Huberman, escava o visível e fere o legível . Com suas matérias informes e suas formações moventes, apresenta um mundo nascente que tremula, pulsa, lampeja. O que nos dá a ver é  provisório, instantâneo, mutante: algo se ilumina para na sequência voltar a imergir na escuridão. Se a grande luz é a metáfora por excelência da verdade, aqui a pequenas luzes apresentam revelações plurais, intermitências:  metaforizam uma perspectiva que desagrega a unidade discursiva, rompe a ordem da Ideia, abre os sistemas e impõem um impensável  (Didi-Huberman, 2013, p.222). Suas imagens evidenciam a estranheza do olhar.

Etimologicamente, o estranho se refere ao de fora, externo ou alheio. Há aqui formas luminosas e corpos celestes que evocam uma atmosfera extraterrena dentro da própria Terra. Não se trata do absolutamente outro: o estranho incide no familiar, como que para sublinhar que tudo contém um gérmen de espanto. Como quando apagamos as luzes de um quarto conhecido e, de repente, um contorno de sombra nos causa estranhamento, nos fazendo indagar o que seria aquilo, se sempre esteve ali. Ou ainda, se podemos confiar em nossos próprios olhos. O olhar, portanto, não como ato de se assegurar, mas como possibilidade de reinaugurar o susto de ver. 

Cravejado de pequenas luzes esvoaçantes, A noite é também  um sol dialoga com a metáfora proposta por Didi-Huberman em outro texto, a  Sobrevivência dos vaga-lumes (2011). O autor afirma as luzes intermitentes dos pirilampos como uma alternativa às grandes forças luminosas ou obscurecidas, pois lhe parece que anseios totalizadores tendem a políticas de violência. Na contramão da claridade ofuscante e da escuridão apocalíptica, haveria comunidades dançantes de luzes menores. A luz pulsante, passageira, frágil produz a possibilidade de uma iluminação em movimento que revela a própria qualidade movente de um mundo misteriosamente vivo. Não se trata aqui da feroz luz do poder, mas das luzes de uma comunidade desejante: segundo o autor, os vaga-lumes se iluminam não para ver o mundo melhor, mas para se verem uns aos outros, em uma espécie de exibição sexual. Também Daniela forma uma constelação desejante de luzes intermitentes. Instala pequenas fontes luminosas em paisagens adensadas e dialoga com estrelas, raios, reflexões e refrações. Captura essas formas iluminadas produzindo rastros, vultos. No lugar do gesto que anseia por esclarecimento, lampejos criadores que pontuam a escuridão. 

As imagens que compõem esse trabalho foram realizadas na Lapinha da Serra, na Serra do Cipó, em Minas Gerais.  A artista fez imersões no local, habitando-o por alguns dias durante dois períodos. Interessava deixar que a paisagem a atraísse, imergia em trilhas e em corpos de água. Sentiu frio, se molhou e deixou que as imagens surgissem desse encontro entre corporeidades.  Por vezes perdia a noção do espaço, se desencontrava de referenciais e isso, afirma, a interessa; pois sua criação surge aí nessa matéria de indistinções, nesse indiscernível que convoca o corpo sensível e presente. Trata-se de um trabalho de encontros: suas imagens aparecem no seu encontro com o que não conhece e nem controla e plasmam em suas formas essa força indócil e inaugural.

Em seu trabalho, Daniela refaz o gesto mnemônico. Em algumas versões míticas, Mnemosyne, a Deusa grega da Memória, segura uma lâmpada  que emite uma pequena luz. Ao contrário de Chronos, o Tempo, que carrega a foice com a qual imputa o contorno implacável das finitudes, Mnemosyne produz a memória como o que é sempre parcial: lembrar é sempre esquecer um pouco. Não por precariedade dos aparatos mnemônicos, mas por estrutura: é preciso nem tudo reter para poder verdadeiramente guardar. Nesse sentido, pode-se dizer que a artista vem produzindo memória de territórios ao longo de sua obra. Não a memória que desvela o fio cronológico, mas uma força propriamente mnemônica que conserva o rastro de mistério. Não clarear toda a obscuridade é condição para que a noite possa iluminar.   

Referências

Didi-Huberman, Georges. Diante da Imagem. São Paulo: Editora 34, 2013

Didi-Huberman, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011

A Noite Também é um Sol – Versão com Audiodescrição e legenda descritiva

Ficha Técnica

Direção e fotografia: Daniela Paoliello

Montagem: Daniela Paoliello

Desenho de Som e Trilha original: João Carvalho

Texto Crítico: Priscilla Menezes

Produção de campo: Fernando de Freitas

Assessoria de imprensa: Camila Bastos

Produção executiva: Natália Ferraz

Acessibilidade: Laís Velloso

Condutor ambiental: Kesley Soares Santos

Agente de logística: Alexandre Diniz



Agradecimentos:

Casas da Jac

Casas do Relton

Local de realização: Lapinha da Serra, MG, Brasil

Ano de realização: 2024-2025