Fiel ao que entrevê*
Priscilla menezes de faria
Daniela Paoliello escava o escuro com seu corpo, que incursiona por paisagens anoitecidas, tendo como bússola a conversa entre os seus sentidos e as densidades do entorno. Ao se deslocar, produz imagens fotográficas que, ao invés de evidenciarem a paisagem, revelam algo acerca da anatomia da escuridão. Feitas de espectros, pontos de luz e texturas, as imagens produzidas nessa série estão menos comprometidas com a luz totalizante dos desvendamentos e mais aliançadas com as pequenas luzes que transladam no céu, refletindo em corpos d’água e em grãos de areia. Luzes menores que mobilizam embaralhamentos entre planos, formas e proporções, dando a ver o que parecem ser rios nebulosos, céus telúricos e chãos cósmicos. O corpo da artista, por vezes, comparece nessas imagens: sempre em proporções modestas e, em diversos momentos, diluído na paisagem, como uma presença íntima da névoa, das espumas e das ondulações. Daniela se coloca como mais um elemento entre os diversos que constituem os cosmos que tateia, gesto que reforça quando empunha pequenas fontes de luz e convida os astros a fazerem consigo uma provisória constelação. A artista não interfere na paisagem senão com objetos que iluminam e refletem – tal qual lanternas e espelhos - dotando a escuridão de pequenos pontos de luz que não a revelam, mas a adensam em mistério e vastidão.
O local onde realizou esse recorte da série “Escavar o escuro” chama-se Costa do Descobrimento, região localizada no sul da Bahia que compreende os municípios de Porto Seguro, Santa Cruz Cabrália e Belmonte. Tal nome se refere à chegada de Pedro Álvares Cabral nesse mesmo local no século XVI. Atualmente, esse território ainda sustenta tensões provocada pela violência colonial, como a disputa entre as populações originárias e seus modos de vida integrados aos biomas locais e os grandes empreendimentos hoteleiros, turísticos e imobiliários que devastam tanto a natureza quanto a diversidade cultural da região. É bastante sintomático que esse território seja marcado pelo significante do Descobrimento, pois dizer que a chegada dos portugueses ao que hoje nomeamos Brasil tratou-se de descobrimento é fazer perpetuar a lógica colonizadora que só reconhece a existência daquilo que a espelha, serve e reproduz. Descobrir, nesse sentido, é impor as próprias lógicas, mecânicas e perspectivas ao enigma do outro.
Diametralmente opostas a essa noção de descoberta, são as experiências que Daniela Paoliello faz. Ao aliançar-se com as luzes intermitentes do anoitecer, toma o que chama de “dupla cegueira” como força motriz de seu trabalho: já que tanto constrói imagens na escuridão, como lança mão dos disparos automáticos da câmera fotográfica, muitas vezes se ausentando da posição de vidente no instante da captura. Com isso, suas fotografias não são forjadas sob a lógica do controle, mas em uma dança entre técnica e contingência, planejamento e acaso, enquadramento e aparição. A artista borra a separação entre sua intencionalidade e a materialidade do mundo que a circunda, oscilando ela mesma entre ser criadora e matéria das imagens que produz. Com esse gesto, abre espaço para que outras agências, que não apenas a própria, interfiram na sua criação, dando forma a um mundo que é potência viva, criadora e cambiante. Um universo que não é puro condensado de recursos – como enxerga a lógica colonizadora – mas um cosmos vivo, repleto de alteridades que comparecem nas imagens de Daniela sob a forma da aparição, mistura e cintilância. A descoberta que Daniela realiza, portanto, não tem a ver com a domesticação do distinto pelas lógicas do mesmo mas, pelo contrário, com a abertura às pluralidades de um mundo vivo, movente e incapturável.
Em um gesto de confiança nos sentidos do corpo e naquilo que apenas entrevê, a artista avança em direção ao mundo, forjando intimidade com o que cintila e turva, produzindo fotografias que evocam uma potência antiga da imagem que é a de ser menos reflexo de um ideal e mais receptáculo para as aparições misteriosas de um mundo vivo que nos atravessa e ultrapassa.
"O poeta [...] entrevê alguma coisa na névoa, e a isto que entrevê é fiel até à morte, fiel por toda a vida. E não lhe exige, como o filósofo, ver a sua cara." Maria Zambrano, A metafóra do coração e outros escritos, Assírio & Alvim, 2000, p.85.
A simbiose do encontro
Fernando vieira de freitas
O trabalho de Daniela Paoliello se situa em uma dinâmica entre o desaparecimento e o desvelamento que tem a natureza como protagonista do processo artístico. O meio natural e a diversidade ecossistêmica que constitui o espaço se apresenta enquanto a força por excelência que produz realidades e determina a paisagem das imagens produzidas. E é nesse encontro da natureza atuando como fundamento de realidades quase oníricas produzidas pela artista que se dá o trabalho de Daniela.
Ainda assim, apesar do caráter onírico que caracteriza o trabalho, ele existe em um contexto específico, é um trabalho situado em um território cravado não apenas pelas linhas burocráticas que determinam municípios, estados e regiões, mas também as linhas inarredáveis da história, que desenham a realidade cultural e social do território. Esse lugar é a chamada Costa do Descobrimento.
A Costa do Descobrimento é delimitada por um episódio, por um evento histórico que aponta para os prenúncios da formação nacional brasileira a partir da área que compreende o primeiro trecho visitado pelos exploradores portugueses na costa baiana. Em 2012, foi oficializado por lei a criação do “Território de Identidade Costa do Descobrimento” como forma de reduzir as desigualdades e promover o desenvolvimento socioeconômico sustentável da região (CONCEIÇÃO, et al, 2020). Hoje o território é composto por oito municípios em mais de 12 mil quilômetros quadrados: Itabela, Guaratinga, Eunápolis, Itagimirim, Itapebi, Belmonte, Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália, sendo esses três últimos os municípios da área costeira.
Até o final da década de 1980 esses municípios integravam a chamada região cacaueira e com o fim da monocultura do cacau estabeleceu-se outras bases econômicas como o a industrialização de bens de consumo e a atividade turística. Como apontam alguns estudos, a região sofreu níveis de degradação social e ambiental acentuados, especialmente nos últimos 40 anos em que a ocupação da área antes de difícil acesso foi possibilidade pela construção da BR -101, que atravessa todo o litoral. É importante salientar esse marco de ocupação pois foi ele que culminou a degradação, com o desmatamento desordenado da área que atraiu a exploração da madeira da Mata Atlântica local. Responsável também pela expansão da pecuária extensiva e a implantação de atividades agrícolas, como o plantio do coco-da-baía e o mamão nas áreas de costa, e a silvicultura de eucalipto que intensificaram o estado de fragilidade ambiental da região (AMORIM, OLIVEIRA, 2013).
Vale dizer, por óbvio, que a terra não foi descoberta no desdobramento do processo colonial, e que sempre foi terra ocupada, habitada pelos povos originários. Hoje é terra especialmente de aldeias indígenas Pataxó, mas também de comunidades negras, de vilas de pescadores e ribeirinhos. Comunidades entranhadas num influxo de ecossistemas diferentes, que dialogam em conflito: o manguezal, o Rio Preto, o Rio João de Tiba, a bacia do Jequitinhonha, os trechos de Mata Atlântica.
No caso de Mogiquiçaba, onde o trabalho de Daniela Paoliello foi realizado, estão presentes de maneira central as terras úmidas, que compõem as áreas que não são nem completamente terrestres nem completamente aquáticas e engloba aquelas áreas inundadas ou saturadas por água como os pântanos, os brejos e florestas inundáveis e os manguezais que crescem ao longo de estuários, canais de maré e costas protegidas. Próximo aos os manguezais encontra-se a vegetação de Mata Atlântica, do outro lado da BR-101 que corta o território.
Se a história se repete como tragédia e farsa, hoje a sanha do “descobrimento” encontra reflexo na apropriação feroz da indústria do turismo, sendo a região o segundo parque hoteleiro do estado da Bahia, lugar da especulação imobiliária que coloniza a potência da natureza no ínfimo e minúsculo espaço dos loteamentos. Aqui retorno ao trabalho de Daniela que, na contramão desse projeto ocupacional de controle do espaço e higienização do território pela ação antrópica, resgata não o caráter “paradisíaco” da beira-mar que é vendida nos panfletos e nos anúncios dos grandes loteamentos, mas imagens que são trazidas pelo encontro entre o corpo e a paisagem. Uma simbiose entre a ausência de luz e os pequenos pontos luminosos intermediada pelo corpo da artista. O corpo, o humano são engolidos numa espécie de troca orgânica que permite o vislumbre de um contato possível entre esses dois entes numa simbiose implicada no encontro.
Esse encontro do qual trata o trabalho da artista, de maneira intencional ou não, reflete também uma dinâmica semelhante àquela presente na maneira que as comunidades locais se relacionam com o seu entorno. Um conhecimento encarnado da natureza fundamentado na vivência enraizada no território. A potência do trabalho de Daniela Paoliello em seu ensaio Escavar o Escuro, está presente em diversas dimensões, mas a maneira como ela resgata o protagonismo do meio natural, mostrando a configuração do território através das imagens mais além da ação humana que historicamente devassou a região, é um relato sensível e poderoso de um retorno à natureza e suas dimensões oníricas.